sábado, 27 de novembro de 2010

Violência no Rio: o bem, o mal, os ovos e o carioca da gema


Esta semana o governador do Rio declarou que "não se faz omelete sem quebrar ovos", em referência à reação incendiária ao cerco ao tráfico nas favelas. Imagens de carros e ônibus em chamas tomaram conta da tevê, das páginas do jornal, e do imaginário dos cariocas. Para desanuviar a minha manhã, divertindo-me um pouco a caminho do trabalho, um locutor de rádio disparou, diante da fala do governador: "de quais ovos Cabral está falando? Os dele? Da família dele?". Certamente não. Nem o de Cabral, tampouco o de Colombo (que, aliás, teve que ser quebrado para ficar em pé, como nos diz a célebre anedota).

É fato, como indica a metáfora do ovo de Colombo, que depois de solucionados os desafios até se parecem fáceis. Mas a verdade é que livrar tantas favelas do tráfico é quase tão complexo quanto manter ovos em pé, sem grandes estragos.

Pensando em tudo isso, tenho enfiado nos pés, nessas últimas manhãs periclitantes, minha super bota de cano longo de borracha. Sentindo-me tal qual a Mulher Maravilha, viajo no coletivo rumo ao incerto (e longínquo) território onde fica o meu trabalho. Chego a hesitar ao refletir que as botas, perante um súbito ataque inimigo, facilmente se derreteriam em chamas. Mas, felizmente, embarco nesta reflexão sobre ovos, esperança, o bem, o mal, e a sobrevivência dos cariocas da gema.

É bacana, e bonito, ver toda essa mobilização no Rio de Janeiro em torno da ocupação de favelas como Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão pela polícia. Ainda que parte desse esforço tenha sido impulsionada pela necessidade de se colocar alguma ordem neste "purgatório da beleza e do caos" por conta da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Ainda que possa ser (mais um) lance de marketing do governo do estado para responder às classes mais facorecidas, que também estão tendo seus carros queimados pelas vias públicas, e suas famílias amedrontadas por seres com galões de gasolina em punho.

É bacana, e bonito, ver esta cidade que parece às vezes ter brotado, sem pai nem mãe, da gema de um ovo, se unindo em torno de uma preocupação em comum, que é o restabelecimento do controle de seu próprio território, de seu próprio destino.

O carioca, de maneira geral, é pouco politizado e mobilizado pelas questões da cidade, com exceção das eternas juras de amor à beleza natural de nossa geografia. Mais eis que, subitamente, todos parecem se preocupar com o que se passa em nossos relevos, para além da acolhedora imagem que paira, braços abertos, sobre a Guanabara.

Nesta semana em que o badalado "Tropa de Elite 2" caminha para ser o filme nacional mais visto de todos os tempos - recorde creditado a "Dona Flor e seus Dois Maridos" - nada mais simbólico do que a repentina euforia da população em torno da nossa polícia, de nossos capitães Nascimento. Em torno da força quase redentora dos poderosos caveiras do Bope.

Neste momento, no entanto, precisamos ter cautela para lembrar que não se trata de uma luta do "bem" contra o "mal", como tem sido veiculado em alguns veículos de imprensa. A população destas comunidades está apoiando a ação? Que bom. Mas não sejamos tolos: a eficácia de uma ação como esta depende de uma visão bem menos pueril do que uma divisão tão primária dos seres humanos entre dois times. Quer dizer então agora que a polícia se tornou a personificação do bem? Hum... quase todos sabemos que não é (tão) bem assim.

A imagem do bem contra o mal é bastante sedutora, e se ela está servindo para aglutinar as forças cariocas da gema em torno de uma "torcida" em comum, ok, tem lá o seu lugar. Mas que a gente possa identificar o bem não apenas com alguns bravos policiais (que certamente existem por aí), como também com a justiça social. Com a libertação dessas pessoas para a verdadeira cidadania.

Que a favela possa ser ocupada pela atenção da gente, aqui do asfalto, não somente quando ameaça esfumaçar nossos destinos.

É bacana, e bonito, ver a solidariedade do povo das favelas. Que mesmo com tão pouco a oferecer, não raro procura compartilhar o pouco que tem com estranhos. Na favela, vemos gente que fala com os vizinhos de porta, que manda o filho para a escola e que rebola, dia a dia, para a criança não virar traficante. Essas pessoas estão agora, mais do que quaisquer outras, no meio do fogo cruzado, muitas sem casa, e sem luz. Que o Estado possa, realmente, se ocupar desses territórios.

Mesmo nos intervalos dos anúncios da tevê.

É um belo momento para todos nós, cariocas, repensarmos a cultura da nossa cidade, saindo da casca do ovo, e recriando essa parte da nossa história tão partida.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom!

Bem contra o mal é uma OVA!