quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Para além da implicância


"Os holandeses têm por cultura implicar. Detesto gente implicante", ouvi recentemente de uma amiga na praia, comentando a respeito de um ex-ficante. Minha amiga falava sobre uma implicância cultural, reforçada e repassada geração após geração. Nunca tinha parado para refletir sobre a gaiatice dos holandeses, mas este comentário me fez pensar naquela implicância cotidiana, corriqueira, que por vezes apimenta, e por outras mina as nossas relações mundo afora.

O jornalista Artur Xexéu é mestre no estilo implicante. Gosto dele. Acho debochado na medida certa. Mas por conta disso, claro, deve colecionar muitos desafetos. E quando a implicância transborda o campo profissional e passa a inundar a nossa vida pessoal, quero dizer, a relação entre amigos, namorados, maridos e mulheres?

Já parou para pensar se você é um ser dotado do germe da implicância? Eu sou. Mas tento manter a minha em um nível saudável. Em geral, esse filhotinho de alfinete - que também pode ser traduzido como alfinetada, pinimba, picuinha - é acionado por motivos totalmente passionais. Implicância costuma ser ativada de maneira automática, impulsiva, quando nos deparamos com ideias, comportamentos ou valores que colidem com os nossos.

Já parou para pensar? Quem pára para refletir no meio do ímpeto de alfinetar, acaba não implicando. A verdade é que existem muitas formas de manifestar discordância diferentes da provocação e do deboche (que nada mais são do que vertentes da implicância). Implicância, dependendo da situação em que é acionada, pode beirar a falta de respeito, de capacidade de ouvir o outro. Em algumas situações, se impõe como uma forma de poder. Quem implica demais, desqualifica. E talvez esteja apenas camuflando a sua própria insegurança.

Nas relações entre casais, defendo a implicância do bem - aquela leve, que é na verdade um afago - em doses homeopáticas. Se ela vem a serviço do humor (esse sim saudável, pacífico e brejeiro), bendita seja a implicância! Às vezes, a gente se leva demais a sério - e quando o outro nos lembra do lado bobo da vida, com uma implicanciazinha bem humorada, tá valendo! Também é comum aparecer esta implicância, que é carinho, quando algo nos diverte ou surpreende. Mas em diversos outros casos, ela só nos afasta dos amigos, e enclausura em uma pretensa torre de "sabedoria". É comum a implicância se disfarçar, revestindo-se de muitas boas intenções para ficar parecendo bacana.

No meu caso, implico por puro carinho, ou ainda com pessoas/comportamentos pedantes, por exemplo. Tenho implicância com quem se acha dono(a) da verdade, ou mais esperto e sabichão do que os outros. O indivíduo pode até "se achar", mas tendo a antipatizar com ele se for avesso ao debate, ao diálogo - ou seja, se não souber ouvir, relativizar, ponderar. Sou pela simplicidade, pelas ideias inacabadas, por vezes até mal expressadas, mas que transmitem uma verdade, uma reflexão genuína.

Escrevo isso tudo também a propósito de uma crítica que li sobre o filme Bruna Surfistinha, estrelado por Debora Secco, e que foi alvo de muitos comentários implicantes. No caso da (bem escrita e fundamentada) crítica em questão, de Rodrigo Fonseca, fiquei com vontade de ver o filme (por pura implicância, talvez eu não visse, se não tivesse lido o texto).

Antes que eu, virginiana implicante por natureza, fique com pinimba deste post, finalizo com a provisória conclusão de que muito mais interessante é descobrir o ser humano existente para além da implicância. Digo isso porque tem gente que vira a própria implicância e torna-se um verdadeiro personagem (aquele que talvez esteja apenas disfarçando uma timidez, desconforto ou insegurança). Eu gosto da implicância do bem, que serve para aproximar, quebrar o gelo, apimentar os debates, fazer rir e refletir. Uma, favorece a existência, a outra, é nociva à convivência.